“No pé que as coisas vão, Jão, doidera,
Daqui a pouco resta madeira nem pro caixão”
(Passarinhos, de Emicida e Xuxa Levy)
Vejo na televisão o apresentador do telejornal anunciar, com ares de quem convida para uma animada festa: “Hoje é aniversário do Rio São Francisco.
O Velho Chico faz 522 anos”. Pura bobagem. Os cientistas garantem que o rio é um pouquinho mais velho. Nasceu há alguns milhões de anos – seu irmão, o Amazonas, nasceu há 9 milhões de anos, dizem os estudos mais recentes.
O homem do telejornal não explicou direitinho, como é recomendável. Mas é certo que ele não se referia ao nascimento do rio, como deixou entendido, e sim ao dia em que uma nau portuguesa, com o navegante Américo Vespúcio a bordo, chegou à sua foz. Foi, de fato, há 522 anos, em 5 de outubro de 1501, dia dedicado a São Francisco. Por conta disso, como era de praxe na época, os exploradores rebatizaram o rio que os indígenas chamavam de Opará ou Parapĩtinga com o nome do santo católico.
Dizer que o rio faz aniversário nesse dia é uma herança do colonialismo, uma distorção eurocentrista. Equivale a dizer que antes disso o rio não existia. Só ganhou existência a partir da chegada dos portugueses. Como, de resto, na opinião dos colonizadores, todo o Brasil.
O aniversário do Velho Chico, mesmo que festejado pela televisão com fartura de bolo e guaraná, é na verdade pauta de quase nenhuma relevância, se considerarmos as crescentes ameaças à preservação do rio, a começar pelo incessante desmatamento de sua bacia hidrográfica.
Só nos últimos quatro anos, foram desmatados 638.338 hectares na área da bacia hidrográfica do São Francisco. Os alertas de desmatamento na área saltaram de 1.087 em 2019 para 7.028 no ano passado. Um crescimento de 546% no período, de acordo com um levantamento realizado pela MapBiomas, rede colaborativa que acompanha e elabora relatórios sobre o desmatamento no país desde janeiro de 2019.
As áreas mais devastadas estão no Cerrado, savana tropical de enorme biodiversidade que vem perdendo parte de sua vegetação nativa com o avanço do agronegócio, sobretudo a monocultura da soja. Só no mês passado, foi registrada uma destruição de 516,7 km² deste bioma, 89% a mais que no mesmo mês de 2022, segundo o Deter, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, que também acompanha a evolução do desmatamento no país.
Os dados do Deter revelam que os números relativos à perda de vegetação são proporcionais ao incremento dos sistemas de irrigação na Bacia do São Francisco, evidenciando a conversão da vegetação nativa em área agrícola como uma das principais causas dos desmatamentos.
O avanço do agronegócio-e, consequentemente, do desmatamento – é maior no Matopiba, acrônimo formado pelas sílabas iniciais de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – não por coincidência, estados onde as licenças para desmatar são concedidas pelos governos estaduais.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, pelo menos metade do desmatamento que ocorre no Cerrado apresenta algum tipo de ilegalidade, seja pela ausência de autorização ou por não respeitar os percentuais de reserva legal.
E não estamos falando de um passado distante: nos nove primeiros meses de 2023, a Bahia teve nada menos que seis municípios incluídos na lista dos 10 que mais desmatam o Cerrado. Pela ordem: São Desidério (1º lugar, com 349.44 km² desmatados), Jaborandi (2º, com 233,38 km²), Cocos (4º, com 210,76 km²), Correntina (5%, com 184,75 km²), Barreiras (6º, com 171,45 km²) e Formosa do Rio Preto (10º, com 106,20 km²).
Com base nos dados do ano passado, pesquisadores do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e do MapBiomas concluíram que na região do Matopiba, onde o agronegócio mais avança, pelo menos 373 municípios correm risco de desabastecimento e de perda da qualidade de água se os níveis atuais de desmatamento se mantiverem nos próximos anos.
Nesta festa pobre do Velho Chico, não cabe bolo nem guaraná!