“Quem cala sobre teu corpo
Consente na tua morte
Talhada a ferro e fogo
Nas profundezas do corte
Que a bala riscou no peito”
(Menino, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)
Primeiro, a boa notícia, se é possível usar esse adjetivo em se tratando de tal assunto: em 2022 caiu o número de mortes violentas intencionais na Bahia. Uma queda de 5,8%, na comparação com o ano anterior, segundo o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta quinta-feira, 20.
Foram 6.659 mortes, soma dos casos de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e óbitos decorrentes de intervenções policiais em serviço ou não. No Brasil, foram 47.508, uma queda de 2,4% em relação a 2021.
O anuário é publicado desde 2007 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com base em informações fornecidas por secretarias de segurança pública estaduais, pelas polícias civis, militares e federal, entre outras fontes oficiais.
Agora, a má notícia: embora o número total de mortes tenha diminuído, a Bahia voltou a liderar o ranking nacional de mortes intencionais violentas. E com uma distância enorme do segundo colocado, o Rio de Janeiro, que tem uma população maior e registrou 4.485 mortes, 36,55% a menos.
Como se não bastasse, a cidade mais violenta do país fica na Bahia. É Jequié, com uma taxa de 88,8 homicídios por 100 mil habitantes. A segunda mais violenta também fica na Bahia: Santo Antônio de Jesus, com 88,3 homicídios por 100 mil habitantes. E a terceira (Simões Filho)… E a quarta (Camaçari)… Das 20 cidades mais violentas do país, 11 estão na Bahia.
No mesmo dia em que o Anuário foi divulgado, a Secretaria da Segurança Pública da Bahia também anunciou e comemorou a redução das mortes violentas intencionais no primeiro semestre deste ano: foram 2.523 contra 2.643 no mesmo período do ano passado, uma queda de 4,5%.
Os números contabilizados pelo governo baiano, porém, não batem com os registrados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A explicação para tal discrepância é de fazer corar um frade de pedra: o governo baiano simplesmente não registra como mortes violentas intencionais aquelas resultantes das ações de seus agentes de segurança. Nem mesmo quando a vítima é um inocente que estava no lugar errado, na hora errada, como tem acontecido.
Para as autoridades de segurança baianas, porém, não existem inocentes nesse bloco. Os mortos em ações policiais são todos homicidas, traficantes, estupradores e assaltantes, entre outros criminosos. Não há, segundo essa lógica, como incluí-los nos dados de mortes violentas praticadas contra pessoas inocentes.
Isso não é transparência, é ardileza. E uma impiedade. Como dizer a uma mãe que segura o corpo de um filho estraçalhado a bala que ali não houve uma morte violenta e intencional? Será possível estancar o pranto de um pai com a desculpa esfarrapada de que o filho morto não foi vítima de uma violência intencional pois as perfurações por onde a vida lhe escoou são mera ilusão de ótica que o laboratório de burocracia policial deve ignorar?
Não há como escamotear a realidade. Toda morte a bala é violenta. E intencional, pois quem acionou a arma o fez com a intenção de atingir o alvo. Não há artimanha capaz de mudar isso.
Os números atestam que a Bahia não é a ilha de fantasia da propagada governamental. É o Estado mais violento do Brasil. Condição lamentável que as tentativas de tapar o sol com uma peneira não conseguem esconder.
