“Onde está o dinheiro?
O gato comeu, o gato comeu
E ninguém viu”
(Onde está o dinheiro, de
José Maria de Abreu, Francisco
Mattoso e Paulo Barbosa)
Em Luanda, no mês passado, uma semana após a morte de Maria Bernadete Pacífico, ao ser homenageado pela Assembleia Nacional de Angola, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez em seu discurso uma referência à líder quilombola, assassinada a tiros por dois homens que invadiram sua casa, no quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, município da Grande Salvador.
“Bernadete foi vítima da intolerância dos que querem calar os mais vulneráveis”, disse o presidente, sem atentar que a frase também remetia, a ouvidos mais atentos, a uma certa manifestação de autocrítica. Afinal, Mãe Bernadete estava sob a proteção direta do governo que ele comanda e, portanto, sob sua responsabilidade.
Não aquela proteção geral derivada do direito social à segurança garantido a todos nós pela Constituição. Mas outra proteção, menos difusa, mais direta e com responsáveis que carregam nome, sobrenome e cargo que ocupam na estrutura do Estado.
Mãe Bernadete (cujo filho mais velho, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, o “Binho do Quilombo”, também líder quilombola, foi assassinado em 2017, crime até hoje não esclarecido) estava sob a proteção do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, desenvolvido pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Na Bahia, a execução do programa fica a cargo da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado, que determinou proteção policial a Mãe Bernadete e instalou câmeras de segurança no entorno da casa dela, no quilombo.
No final do ano passado, porém, a execução do programa no território baiano foi terceirizada e entregue a uma organização não-governamental, a Ideias, que passou a gerenciar um orçamento anual de R$ 1 milhão em verbas federais e estaduais para assegurar proteção a cerca de uma centena de defensores de direitos humanos ameaçados, só na Bahia.
Uma mixaria, considerando que a Bahia é o segundo estado do Brasil com mais ocorrências de violência contra povos e comunidades tradicionais, atrás apenas do Pará. Entre 2017 e 2022, o Estado registrou 428 vítimas de violência, segundo levantamento da Rede de Observatórios de Segurança divulgado em junho deste ano.
Das sete câmeras instaladas no entorno da casa de Mãe Bernadete, uma estava quebrada e outras duas estavam direcionadas para o chão. Não havia dinheiro para fazer a manutenção do equipamento – que sequer estava ligado à central de monitoramento da polícia, como seria de imaginar –, explicou candidamente Wagner Moreira, coordenador da Ideias, em entrevista ao portal UOL. Uma câmera dessas, da marca Elsys (modelo Anpoe Bullet Full HD), é encontrada por cerca de R$ 150 em lojas virtuais.
Na primeira metade da década de 1970, durante as investigações do caso Watergate, uma invasão à sede do comitê eleitoral do Partido Democrata em Washington, os jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein, do jornal Washington Post, ouviram a frase “Siga o dinheiro”, de um informante cujo nome foi mantido em sigilo e que eles apelidaram de “Garganta Profunda” (referência um filme pornô que fazia sucesso na época). Seguindo a pista, os repórteres foram bater nas portas da Casa Branca, o que acabou levando à renúncia o presidente Richard Nixon.
Aqui, a pista é outra. É a falta de dinheiro. Seguindo-a, chegaremos a outros responsáveis pela morte de Mãe Bernadete. Afinal, os culpados não são apenas os que apertaram os gatilhos e atingiram a líder quilombola com 22 tiros, nem os que os mandaram cometer o crime. Também são culpados os que assumiram o compromisso de protegê-la e relaxaram no cumprimento do dever.
Ah, só em maio de 2005, o “Garganta Profunda” resolveu, ele próprio, identificar-se: era W. Mark Felt, o segundo na hierarquia do FBI, a agência federal americana de investigações.
